Registro de contrato de direito autoral: necessário ou excesso de legalidade?

Por Ticiano Gadêlha

 

Sobre um tema tão polêmico, apenas para ilustrar o que será discutido aqui, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou seguimento a Recurso Especial (REsp 1.500.635) da empresa Novo Impacto Publicidades contra a Universal Music, em famigerado processo movido em desfavor dos artistas funkeiros Claudinho (por meio de seu espólio) e Buchecha, BMG Brasil e Moderninho Produções Artísticas.

Tal processo versa sobre o contrato de cessão de direito autoral celebrado inicialmente pela dupla de cantores e a empresa Novo Impacto.

Na instância inicial, o Juízo a quo condenou a dupla, a Universal e a Moderninho à indenização por danos materiais e rejeitou o pleito por danos morais.

Em apelações da Novo Impacto, da Universal e do músico Claucirley Jovêncio de Souza (Buchecha), o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) deu provimento apenas ao recurso da Universal, um vez que ela não foi responsável pela reprodução não autorizada das músicas cedidas à Nova Impacto. Isso ocorreu porque não foi realizado registro do contrato de cessão de direitos autorais no órgão competente como preleciona a Lei de Direito Autoral – LDA (Lei nº 9.610/98).

Não apenas o direito autoral prescinde de registro, como sua respectiva cessão também. Contudo, como preleciona o art. 50 da LDA, é necessário acautelamento quando houver transações onerosas tendo por escopo a negociação de direito autoral por meio de cessão, qual seja:

Art. 50. A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se fará sempre por escrito, presume-se onerosa.

1º Poderá a cessão ser averbada à margem do registro a que se refere o art. 19 desta Lei, ou, não estando a obra registrada, poderá o instrumento ser registrado em Cartório de Títulos e Documentos. (…)

Como o diploma legal prevê, não há obrigatoriedade em registrar o direito autoral per si, tampouco seu respectivo contrato de cessão (onerosa ou gratuita). Apesar disso, é de suma importância perceber a segurança jurídica que os registros oferecem (tanto da obra, quanto do contrato de cessão), uma vez que o cessionário investe em todas transações.

Retomando o processo ora analisado, a Novo Impacto atacou o acórdão por não ter concedido eficácia ao registro de contrato de cessão realizado em cartório de títulos e documentos – como assegura o art. 50, §1º da LDA. Todo o imbróglio reside na divergência legal, uma vez que aquele contrato fora celebrado sob a égide da Lei de Direitos Autorais vigente à época (Lei 5.988/73). Por ela, para gerar efeitos erga omnes, era indispensável a averbação do contrato de cessão na Fundação Biblioteca Nacional (FBN), na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EM/UFRJ), na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ), no Instituto Nacional do Cinema (INC) ou no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA).

É possível questionar a necessidade de registro de um contrato (de cessão) de direito autoral para gerar efeito erga omnes, uma vez que a demonstração de titularidade caberia até que prova em contrário, ou seja, alguém demonstre ter sido beneficiado por uma cessão de direito autoral, se fosse seguido raciocínio idêntico ao do direito autoral per si.

Como a vigente Lei de Direito Autoral (Lei nº 9.610/98) dispensa a necessidade de registro, é de difícil compreensão a obrigatoriedade de um ato, ainda que formal, derivado deste. Ora, se um direito original prescinde de registro, como sua cessão não prescindirá? Não parece razoável em teoria, embora ofereça segurança prática que mereça uma boa e atenta reflexão.

A Lei de Direito Autoral revogada (Lei nº 5.988/73) enunciava (em artigo também revogado) que: “Art. 53. A cessão total ou parcial dos direitos do autor, que se fará sempre por escrito, presume-se onerosa. § 1º Para valer perante terceiros, deverá a cessão ser averbada à margem do registro a que se refere o artigo 17.”

Já o mencionado art. 17 (da mesma Lei nº 5.988/73 revogada), diz (no presente, pois, em tese, o art. 17 não foi revogado, embora a Lei nº 9.610/98 também não o aborde) que: “Art. 17. Para segurança de seus direitos, o autor da obra intelectual poderá registrá-Ia, conforme sua natureza, na Biblioteca Nacional, na Escola de Música, na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Instituto Nacional do Cinema, ou no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia. § 1º Se a obra for de natureza que comporte registro em mais de um desses órgãos, deverá ser registrada naquele com que tiver maior afinidade. § 2º O Poder Executivo, mediante Decreto, poderá, a qualquer tempo, reorganizar os serviços de registro, conferindo a outros Órgãos as atribuições a que se refere este artigo.”

A consulta pública para a reforma da atual LDA contempla novamente essa faculdade, consoante o “Art. 19. É facultado ao autor registrar a sua obra na forma desta Lei. (…).”

Olhando adiante (reforma da atual LDA), tem-se que “Art. 50.  A cessão total ou parcial dos direitos de autor, que se fará sempre por estipulação contratual escrita, presume-se onerosa. § 1o  A cessão dos direitos do autor deverá ser averbada pelo cessionário à margem do registro a que se refere o art. 19 desta Lei, quando a obra estiver registrada, ou, não estando, o instrumento de cessão deverá ser registrado em Cartório de Títulos e Documentos. (…)

Não fosse suficiente exigir (“…deverá…”) a averbação de contratos em que o direito autoral fora registrado, também impõe ao autor registrar o instrumento de cessão em Cartório de Títulos e Documentos quando o direito original não o foi. Além de o autor se preocupar em registrar, ainda precisará saber qual o local adequado, uma vez que o cartório apenas o assistirá se o seu direito não houver sido registrado.

O que se discutiu no processo em tela foi o registro do contrato de cessão de direito autoral e não o direito original. Tanto a antiga lei (Lei nº 5.988/73), quanto a atual (Lei nº 9.610/98), como a consulta pública do anteprojeto de reforma, mencionam tal necessidade.

Interessante é o animus do legislador de olhar para o contrato de cessão de forma distinta da conferida ao direito autoral per si. O direito material prescinde de registro, mas o contrato que o cede não. Essa preocupação rarefeita com a exigência de demonstração de anterioridade mostra uma vanguarda jurídica ao onerar quem quiser provar autoria. Já a exigência da averbação do contrato de cessão mais parece uma postura retrógrada ao contrariar a matéria sobre a qual se aborda.

A busca de proteção de quem recorreu ao registro é mitigada por essa exigência. Conforme o tempo passa e a tecnologia se faz mais presente é inaceitável que o Poder Público exija algo muito mais suscetível a erros, a falsificações e a eventuais desvios de condutas de funcionários do que ofertar a liberalidade ao autor de registrar se e onde quiser.

Embora este autor defenda fortemente o registro tanto do direito autoral, quanto de seus correspondentes contratos de cessão, a bandeira maior aqui discutida é a liberalidade do autor que não deveria ter qualquer obrigação formal para garantir seu direito. Ora, se for precavido, gozará da melhor proteção possível; em sentido contrário, terá dificuldades geradas por seu descuido que não deverá ser tutelado pelo Poder Público, sob pena de, mais uma vez, adentrar na esfera privada em detrimento de toda a coletividade.

O Brasil vai mais além quando tudo parece não poder piorar, uma vez que estabelece os locais públicos onde obras artísticas devem ser registradas enquanto o próprio Poder Executivo federal não disciplinar – ou não corroborar tais locais, de acordo com o “Art. 113-B.  Enquanto os serviços de registro de que trata o art. 19 desta Lei não forem organizados pelo Poder Executivo federal, o autor da obra intelectual poderá registrá-la, conforme sua natureza:

I – na Fundação Biblioteca Nacional;

II – na Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro;

III – na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro; ou

IV – no Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia.

  • 1o Se a obra for de natureza que comporte registro em mais de um desses órgãos, deverá ser registrada naquele com que tiver maior afinidade.
  • 2o Não se aplica o disposto neste artigo para o registro de programas de computador.” (NR)

Mais uma vez, dificulta onde parecia não ser mais possível, pois determina, em seu § 1o , que deverá ser registrada onde houver maior afinidade. Surgem duas questões: deverá ou poderá, já que o autor decide se registra ou não; e quem pode definir a afinidade de uma obra, senão o próprio autor? Dificilmente, haverá consenso quanto às duas respostas.

Felizmente, o § 2o limitou a discricionariedade do Poder Público deixando o programa de computador em legislação própria (Lei nº 9.609/98).

Conclui-se, portanto, que a obrigatoriedade do registro do contrato de cessão de direito autoral não se sustenta alinhado aos anseios da sociedade por menor burocracia, embora seja importante esclarecer a importância do registro tanto para o direito autoral em si, quanto para os contratos de sua transferência.

Não é por meio de obrigatoriedades que o País fomenta a cultura, mas pelo incentivo de coletividade, de compartilhamento de ideias e anseios. O natural é a divisão e jamais a apropriação individual que decorre do feudalismo e da decisão humana por limitar, por cercar e nomear como seu o que outrora era de todos. No direito autoral, não é diferente: se é de fato seu, cuide de buscar proteção se desejar e permita ou não o usufruto de todos.

Caso deseje negociar e tenha aspirações econômicas diretamente ligadas à exploração pecuniária da obra, deve ser recomendado e jamais obrigatória uma formalidade sem a qual o autor apenas é afastado de sua atividade criativa para se preocupar com o exarcerbado formalismo jurídico.

 

Ticiano Gadêlha é Advogado especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela PUC Rio, com extensão em Propriedade Intelectual com ênfase em Direito Autoral pela FGV e mestrando em Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento pelo INPI. Presidente das comissões de Propriedade Intelectual do Instituto dos Advogados de Pernambuco (IAP), da Ordem dos Advogados de Pernambuco (OAB/PE), representante da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI) em Pernambuco e Diretor Jurídico da Associação Beneficente Criança Cidadã (ABCC).

 

 

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‘Rating System’: a construção de uma sociedade ranqueada

Classificar coisas e pessoas sempre fez parte do cotidiano do ser humano, a atribuição de uma nota para dizer se algo é “bom” ou “ruim”, “positivo” ou “negativo” faz naturalmente parte do contexto social. Contudo, o rating, como assim foi nomeado este hábito de classificação, só foi inserido na sociedade de forma metodológica por volta do século XIX. E, de forma sistemática e automatizada, entre meados do século XX e, finalmente, consolidado no início do século XXI através de softwares de processamento de dados. Hoje, com o Big Data, vive-se o seu nirvana.

Tudo teve início, após uma grave crise financeira ocorrida durante a Revolução Industrial por volta de 1873, quando começou a ser desenvolvido um método para análise da solvabilidade – saúde financeira – das empresas. Este consistia numa pontuação de risco das empresas que era feito de acordo com o histórico de pagamento delas através de critérios puramente objetivos. Mais tarde este mesmo método evoluiu ao ser incorporado pelas empresas Fitch Ratings, Standard & Poor’s e a Moody’s Investors Service, mais conhecidas como as primeiras Agências de Classificação de Risco de Crédito – credit rating agency.

Com o advento do século XX e com o desenvolvimento de uma economia globalizada, essa prática de ranqueamento foi transportada das agências para as empresas de crédito financeiro e, a avaliação que antes era exclusiva às pessoas jurídicas, passou também a ser utilizada para as pessoas físicas. Empresas de empréstimos pessoal e de avaliação de risco de mercado passaram a classificar pessoas e as suas respectivas capacidades de solvabilidade, através do sistema de Credit Scoring[1][2].

Na medida em que esses sistemas se desenvolviam, a Internet igualmente se popularizava e nascia através dela o e-commerce. Até onde se tem notícia a primeira grande plataforma online a inserir um sistema de ranqueamento foi o Ebay. A grande “sacada” dele foi inserir as avaliações dos vendedores, como uma forma de construir uma relação de confiança com os consumidores, fazendo com que os usuários confiassem o bastante nas pessoas que estavam vendendo para assim adquirir os produtos delas e, consequentemente, isso gerasse a expansão de e-commerce do site.

Ou seja, com a expansão da Internet e com o surgimento do comércio eletrônico, o sistema de reputação tinha apenas a finalidade de estimular a confiança dos consumidores. O ato de atribuir uma nota para classificar um produto tinha um espaço muito bem delimitado até então.

Atualmente, o rating atingiu outra proporção. Ultrapassando os conceitos sistemáticos e critérios objetivos de classificação, formulados através de algoritmos, para adentrar na esfera pessoal de classificação de pessoas por pessoas. Sem a utilização de uma fórmula matemática, apenas através de critérios subjetivos, o rating system deu um novo passo, e isso só foi possível com a popularização das empresas de sharing economy e a decisão delas de inserir esse sistema dentro de suas plataformas.

Era essencial para o sucesso do negócio desenvolver um método que ajudasse na construção de uma relação de confiança entre os usuários e os prestadores de serviço e, por isso, a solução mais conveniente foi incorporar o sistema de pontuação nesses atores, sendo os exemplos mais comuns no Brasil a Uber, Cabify e Airbnb.

Na medida em que a popularidade desses modelos de negócio crescia, a relevância da reputação dos prestadores de serviços expandia proporcionalmente, uma vez que se tornava uma informação relevante e cativante para o usuário nela ingressar, bem como para o motorista captar clientes.

Restringindo a análise apenas para modelos de economia compartilhada voltada para transporte, tais como a Uber e a Cabify, primeiramente, é necessário entender como a avaliação funciona para em seguida compreender os reflexos sociais e econômicos que ela pode gerar.

 

Construindo uma reputação

Ao chamar um carro, após o aceite da corrida pelo motorista, a primeira informação que você visualiza é a reputação dele, no caso, seu score de 1 a 5 estrelas. Finalizada a corrida, o usuário pode classificar o motorista, podendo ainda fazer elogios sobre a performance dele, clicando nas tags pré-determinadas ou escrevendo um comentário, como se vê no app da Uber:

 

 

Diante disso, percebe-se que a reputação se constrói pela média geral de corridas, quanto mais estrelas o motorista receber melhor será a pontuação dele. Além disso, em contrapartida, o sistema também oferece ao motorista a possibilidade de ranquear o usuário do seu serviço. No caso da Uber, por exemplo, o sistema oferece opções de atribuir um score de 1 a 5 estrelas ao usuário, enquanto que na Cabify este apenas dá a possibilidade ao motorista dizer se a corrida com o usuário foi boa ou ruim através de um sinal de positivo ou negativo. Dessa forma, tanto na Uber quanto na Cabify o usuário também possui um score.

A forma como o ranqueamento se apresenta é a de que quanto melhor o serviço for prestado, melhor é a avaliação dele e, consequentemente melhor é a avaliação do motorista. Contudo, na Uber Brasil esses critérios não estão tão claros e acessíveis, enquanto na plataforma da Uber em Jonhanburgo é possível entender um pouco mais a fundo os critérios utilizados e o seu impacto na forma de trabalho do motorista:

 

 

Na imagem acima é possível verificar uma tabela, na qual são elencadas a quantidade de corridas e a nota proporcional a elas que o motorista precisa manter para continuar trabalhando no aplicativo.

 

 

Afere-se a média do motorista com base em uma fórmula matemática desenvolvida pela própria empresa. Todas as avaliações que ele recebeu, são somadas e divididas pela quantidade efetiva de corridas em que ele foi avaliado, o resultado gera uma nota de 1 a 5, o qual se modifica diariamente.

Para que o prestador de serviço possa continuar a utilizar a plataforma, ele precisa obrigatoriamente manter a pontuação exigida pelo aplicativo, sob pena de ter o seu serviço temporariamente indisponível ou até mesmo desligado. Por outro lado, se ele possuir um bom desempenho, ele será premiado com acesso a uma maior quantidade de corridas, podendo vir a ter uma maior rentabilidade. A título comparativo, na Cabify, caso o motorista mantenha uma boa média geral – sempre acima de 4,0 – e com muitas avaliações 5,0 estrelas, ele poderá receber incentivos financeiros, os chamados bônus por desempenho[3].

A Uber informa que mantém esses padrões para poder manter um serviço de alta qualidade e assim catalisar novos usuários para o aplicativo[4]. Como empresa ela tem todo o direito de criar regras acerca da utilização do seu serviço. No entanto, para cobrar isso dos motoristas primeiro é necessário ensinar os usuários a avaliar, e até o momento é possível verificar que isso não foi feito. Considerando isso, é necessário questionar até que ponto a “balança mental” do usuário é a melhor saída?

 

A trivialidade em avaliar: sociedade ranqueada

O que se percebe é que ao mesmo tempo em que se tornou trivial o ato de avaliar, a importância dele cresceu exponencialmente, uma vez que ele passou a trazer benefícios econômicos aos prestadores de serviços avaliados. Contudo, em que pesem esses benefícios, fato é que ocorreram diversos banimentos de motoristas e usuários de aplicativos como o Uber, e isto demonstra que o sistema em si ainda está no seu estado in natura e que as pessoas simplesmente não sabem como utilizá-lo.

Condicionar as avaliações mediante critérios subjetivos, os quais, podem ser entendidos como bom humor ou mau humor, ou critérios puramente pessoais, demonstram que o fenômeno da uberização está longe de chegar a um caráter equitativo e equânime. No Uber pool por exemplo, se o usuário não gostar da experiência de compartilhamento da corrida, a plataforma não dá a opção de avaliar o Uber pool em si, mas apenas o motorista, o qual não é o responsável pelo sistema, e acaba sendo o bode expiatório da empresa para inúmeras avaliações negativas dos usuários contra o Uber pool.

Além disso, não precisa ir até à ficção da série Black Mirror, para entender essa situação, basta apenas olhar para a realidade a partir do exemplo da empresa Reputation, especializada na implementação de reputação em plataformas. Com a finalidade de tornar mais fidedignas as avaliações dos usuários, a Reputation possui um software que ajuda as empresas a melhorarem a avaliação e críticas dos seus produtos ou serviços, o que gera uma maior rentabilidade às empresas bem avaliadas.

Fato é que analisando todas as recomendações da Uber, que é o exemplo aqui utilizado, verifica-se que elas ainda não refletem a importância do rating, bem como ainda são rasas e obscuras em dar subsídios para que as pessoas entendam como devem proceder numa avaliação e porquê ela importa.

Quando adentramos na seara do ranqueamento voltado para reputação, percebemos que ele se baseia em pessoas que avaliam pessoas, por critérios pessoais, ao mesmo tempo, quando pensamos em avaliação através de algoritmos, chegamos a conclusão de que a tecnologia também é humana, e esta, como temos visto, não tem sido nem transparente e nem acessível. Dessa forma, o que resta fazer?

Tudo isso me lembra muito um trecho do livro “Homo Deus” do Yuval Noah Harari que diz que a avaliação das redes de cooperação humanas depende do parâmetro e do ponto de vista que nós como sociedade adotamos e que ao mesmo tempo estas mesmas redes se avaliam por parâmetros inventados por elas próprias[5]. Partindo do pressuposto que critérios subjetivos não são parâmetros, precisamos encontrar um equilíbrio, algo que torne o rating horizontal e dê a possibilidade de se questionar uma avaliação de forma efetiva. A construção reputacional de forma aleatória e trivial gerará impactos e, caso a atenção devida a este novo fenômeno sociológico não seja dada, toda essa discussão no final das contas pode vir a se resumir em uma avaliação, de 1 a 5 estrelas, feita por você leitor.

 

Maria Cecília Oliveira Gomes, é advogada especializada em Direito Digital e Propriedade Intelectual, cofundadora do Digital Rights.cc e Pós-graduanda em Propriedade Intelectual e Novos Negócios na FGV.

 

Artigo publicado no Nexo Jornal em 19.04.2017 e disponível emhttps://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/%E2%80%98Rating-System%E2%80%99-a-constru%C3%A7%C3%A3o-de-uma-sociedade-ranqueada e republicado na íntegra no Digital Rights.cc

 

[1] Vale ressaltar que o desenvolvimento do credit scoring, envolve pessoas, e muitas empresas ainda seguem um modelo de avaliação que combina automação de sistema e “feeling” dos seus analistas de crédito, portanto, ainda não estamos em um momento da história em que o scoring se desenvolve 100% automatizado. Recomendo fortemente a leitura da dissertação de mestrado do Danilson Pedro da Veiga Semedo, publicada em 2009, e que traz um panorama histórico do credit scoring bastante completo: https://run.unl.pt/bitstream/10362/4041/1/TEGI0258.pdf

[2] Os modelos de credit scoring são sistemas que atribuem scores às variáveis de decisão de crédito de um requerente, mediante a aplicação de técnicas estatísticas. Esses modelos visam sumariar todas as características que permitem distinguir os bons dos maus empréstimos (Lewis, Edward M. An Introduction to Credit Scoring. Vol. Seconde Edition. San Rafael, California: Fair, Isaac and Co.,Inc., 1992).

[3] Nota da autora: essas informações foram obtidas com diversos motoristas da Uber e da Cabify, que não quiseram se identificar, em várias corridas que eu fiz, onde questionei sobre o funcionamento do rating, bem como se existiam bonificações por desempenho.

[4] “Why are ratings important? It is important that driver-partners operating on the Uber platform maintain a high rating because the higher quality of service that is provided the more riders will want to use the product. If a driver-partner does not provide a high level of service then not only is it bad for the Uber brand but it also has a negative impact on other Uber driver-partners as they are losing possible rides.”

[5] Harari, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Tradução Paulo Geiger. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. pág. 184.