Cadeia de custódia das provas no Processo Penal

“CADEIA DE CUSTÓDIA DAS PROVAS – A imprescindibilidade de sua existência para uma persecução criminal eficiente em consonância com os direitos e garantias fundamentais do investigado”

  1. Noções Gerais sobre a perícia computacional e a cadeia de custódia:

No mundo atual, tranquilamente, os comportamentos humanos são indissociáveis da utilização dos meios e ferramentas disponíveis pela tecnologia da informação. Nessa esteira, tendo em vista que grande parte das condutas humanas, ainda que com o auxílio das ferramentas tecnológicas, geram reflexos jurídicos, temos, portanto, a potencialidade pretensões resistidas no âmbito cibernético.

A boa doutrina do professor Tarcisio Teixeira[1] realça o tema, nos brindando com amostras de como os atos, fatos ou negócios jurídicos praticados com o uso de equipamentos tecnológicos podem irradiar efeitos problematizantes para os operadores do direito:

“A todo instante são noticiados problemas jurídicos em que o meio eletrônico foi em algum momento utilizado, em especial para a prática de fraudes eletrônicas em geral, crime de informática, abuso no uso de e-mail ou acesso à internet, violação de segredo industrial, violação de marcas, patentes e direito autorais, etc.”

Portanto, é assente na doutrina que as ferramentas tecnológicas também propiciam uma mobilidade delitiva jamais tida nos antepassados, de modo que, invariavelmente, deixarão vestígios, haja vista que os crimes eletrônicos ostentam, em seu gene, a característica não transeunte ou de fato permanente[2].

Dessa forma, o meio de prova que subsidiará, de maneira substancial, a imputação ou isenção de responsabilidade de alguém, averiguado por um suposto crime cibernético, será a Perícia Forense Computacional.

Por Perícia Forense Computacional a clássica definição, muito bem delineada, pelo professor Tarcisio Teixeira, consiste:

“Quando a análise pericial ocorre na própria máquina, ou seja, quando um computador foi utilizado para a prática do crime. Neste caso, a informática atende como um sub-ramo da ciência forense, a denominada perícia forense digital ou perícia forense computacional. A perícia forense computacional nada mais é que um conjunto de técnicas cientificamente comprovadas, utilizadas na tarefa de coleta, aquisição, identificação, preservação, restauração, análise, documentação e apresentação de evidências computacionais […] Cabe destacar que a perícia forense digital trabalha em um contexto fechado, delimitado por um caso ou um delito já realizado. Neste caso, o perito digital tem em mãos evidências digitais que serão filtradas quer sejam em componentes físicos ou dados que foram processados eletronicamente e armazenados em mídias computacionais; e que, posteriormente, irão gerir os laudos que assistem os juízes em suas sentenças”.

Em que pese à boa análise pericial de um computador, bem como seus componentes e/ou periféricos, temos que tal difusão laboral não se exaure por si só. É de suma importância a preservação da integridade dos arquivos, documentos e dados comprobatórios da prática delitiva encontrados no equipamento eletrônico periciado.

E tal preservação dar-se-á por meio de métodos que impeçam a alteração do conteúdo localizado, de modo que, possa ser utilizado como supedâneo para condução de procedimento investigatório preliminar, bem como possa ainda auxiliar o representante do Ministério Público na elaboração de opinio delicti, sendo esta condizente como o que encontra-se no bojo da apuração prévia.

Tal preservação de fontes probatórias vem calcada na boa manutenção da cadeia de custódia, a qual conceitua-se como sendo: “um sistema fundamentado no princípio universal da autenticidade da evidência (lei da mesmidade) que determina que o “mesmo” que se encontrou na cena é o mesmo que se está utilizando para tomar uma decisão judicial” (tradução livre).[3]  

 

  1. A exigência da cadeia de custódia nos procedimentos investigatórios preliminares e nos processos criminais:

Dado o conceito técnico de cadeia de custódia, entendemos que a sua finalidade se adequa a variáveis facetas na persecutio criminis.

Embrionariamente, a cadeia de custódia alberga verdadeiro respeito a um bem jurídico tutelado pela seara penal, insculpido no Capítulo III, do título XI, intitulado “crimes contra a Administração da Justiça”, cujos entes da sociedade estão sujeitos a sanção penal, sem qualquer distinção, caso infrinjam os elementos dos tipos penais ali constantes. Dessa sorte, a existência de freio legal é medida de rigor, em sede de seu descumprimento.

De outra banda, a segurança que o Juiz Natural terá no momento processual atinente a valoração da prova é de extremo relevo, pois deparar-se-á com elemento probatório autêntico sem vicissitudes de frequente manipulação por parte dos órgãos de controle, do dominus litis e, por fim, pela própria defesa que, a todo custo, também poderá subverter a ordem para o alcance de um decreto absolutório ao termo da lide.

Nessa esteira, como bem alude o Diretor do Centro de Estudos da Fundação Lux Mundi em Bogotá, no caso, o professor Juan Carlos Urazán Bautista, leciona com maestria:

“A autenticidade do elemento constitui segurança para a administração da justiça, pois está se desenvolve com fundamento na realidade, não em meios de conhecimentos que não a reproduzem. Portanto, é para os administrados uma garantia de justiça” (tradução livre)[4].

Conforme já repisado no presente trabalho, da regra ou princípio da mesmidade se defluem importantes considerações processuais de salutar. Em iniciais apontamentos e, reputamos por mais importante, quando há eventual rompimento da cadeia de custódia de determinado elemento probatório, temos a frontal violação do Devido Processo Legal substantivo, nos moldes do que a Carta Magna preceitua no enunciado normativo do artigo 5º, inciso LIV[5].

Decorrente da violação ao preceptivo constitucional supracitado, escorada na adulteração do elemento probatório, o Princípio do Contraditório e da Ampla Defesa[6] também encontra-se prejudicado, visto que o patrono do constituinte deparar-se-á com um prova carente de fé, confiança, mitigando, portanto, a contrariedade do real elemento probatório inicialmente encontrado. Consequência lógica dessa afetação seria o desrespeito à Paridade de Armas que as regras do jogo processual conferem aos contendores.

Não menos importante, são as problemáticas processuais que gravitam acerca do rompimento da cadeia de custódia. Fato é que a regra comum do jogo processual seria a respeitabilidade às disciplinas legais, formas e procedimentos, sob pena de incidência do princípio da nulidade processual ou mesmo antijuridicidade da prova produzida de maneira ilícita, com respaldo nos preceitos garantidores da Constituição Cidadã[7].

No ponto, não ingressaremos em tal celeuma, visto tratar-se de institutos jurídicos distintos com finalidades diversas para o elemento probatório endoprocessual viciado. A guisa doutrinária, para aqueles que compreendam pela afetação ao Princípio da Nulidade Processual, o efeito prático dado pela norma processual penal se consolida na renovação ou retificação do ato violador da norma procedimental, como bem ensinam os Professores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar[8], in verbis:

“A nulificação do ato processual pode produzir o especial efeito de que os atos sejam renovados ou mesmo retificados. O juiz deve declarar precisamente a extensão dos efeitos de seu decreto de nulidade. Os parágrafos 1º e 2º, do artigo 573, CPP, preconizam esse dever judicial. Daí que o princípio da causalidade não é automático. Isso porque é possível, em dada hipótese, que não haja necessidade de decretação de nulidade de todos os atos subsequentes, em especial daqueles que não dependam do ato viciado. Sem embargo, fundamentação consistente na decisão judicial é imprescindível, notadamente para não mitigar as garantias processuais das partes”.

Tese diametralmente oposta se configura na antijuridicidade da prova produzida por meios ilícitos, a qual é defendida pelos Professores Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa[9], momento em que defenderam a exclusão probatória, com esteio na afronta ao sistema de controle epistêmico de atividade probatória, cuja tese também é defendida pelo Professor Geraldo Prado[10], senão vejamos:

“Questão final é: qual a consequência da quebra da cadeia de custódia (break on the chain of custody)? Sem dúvida deve ser a proibição de valoração probatória com a consequente exclusão física dela e de toda a derivada. É a “pena de inutilizzabilità” consagrada pelo direito italiano. Mas é importante que não se confunda a “teoria das nulidades” com a “teoria da prova ilícita”, ainda que ambas se situem o campo da ilicitude processual, guardam identidades genéticas distintas. É por isso que não se aplicam às provas ilícitas as teorias da preclusão ou do prejuízo. Esse é um diferencial crucial, não raras vezes esquecido”.

Desvenda-se, portanto, a imprescindibilidade de uma cadeia de custódia coesa e objetiva, para que as partes possam desmistificá-la visando a aproximação da verdade, a fim de concluir a lide de maneira equânime e justa, tal como os preceitos legais e morais se impõem.

  1. A visão jurisprudencial acerca da integridade e preservação da prova produzida:

Nosso colendo Tribunal da Cidadania já teve a oportunidade de se debruçar sobre a matéria, em sede de impetração de Habeas Corpus, visando a decretação de ilicitude de prova produzida em desrespeito à questão epistêmica de atividade probatória pelo Departamento de Polícia Federal, em sede de interceptação das comunicações telefônicas, convalidadas pelo Juízo, no curso da operação denominada “Negócio da China”.

Oportunamente, fora concedido acesso às interceptações telefônicas por parte da defesa, momento em que constatou-se o extravio das gravações, ainda em sede Policial, não sendo conferido aos patronos do constituinte os áudios na forma com que foram interceptados, havendo descontinuidade nos diálogos e entrega das conversas em ordem aleatória, culminando, assim, na omissão de diversos áudios.

Na espécie, a Ministra Assusete Magalhães, por compreender que houve violação aos Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa e à Paridade de Armas, assentou que o constrangimento ilegal estava evidenciado em face dos averiguados, decretando a anulação das provas obtidas em sede de interceptação telefônica e telemática, o seu respectivo desentranhamento integral do material obtido à cargo do juízo a quo, pela existência de prova ilícita por derivação:

PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO ORDINÁRIO. UTILIZAÇÃO DO REMÉDIO CONSTITUCIONAL COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO. NÃO CONHECIMENTO DO WRIT. PRECEDENTES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. QUEBRA DE SIGILO TELEFÔNICO E TELEMÁTICO AUTORIZADA JUDICIALMENTE. SUPRESSÃO DE INSTÂNCIA COM RELAÇÃO A UM DOS PACIENTES. PRESENÇA DE INDÍCIOS RAZOÁVEIS DA PRÁTICA DELITUOSA. INDISPENSABILIDADE DO MONITORAMENTO DEMONSTRADA PELO MODUS OPERANDI DOS DELITOS. CRIMES PUNIDOS COM RECLUSÃO. ATENDIMENTO DOS PRESSUPOSTOS DO ART. 2º, I A III, DA LEI 9.296/96. LEGALIDADE DA MEDIDA. AUSÊNCIA DE PRESERVAÇÃO DA INTEGRALIDADE DA PROVA PRODUZIDA NA INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA E TELEMÁTICA. VIOLAÇÃO AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO, DA AMPLA DEFESA E DA PARIDADE DE ARMAS. CONSTRANGIMENTO ILEGAL EVIDENCIADO.HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO. ORDEM CONCEDIDA, DE OFÍCIO. “Conquanto seja pacífico o entendimento de que desnecessária a transcrição integral de todo o material interceptado, é imprescindível que, pelo menos em meio digital, a prova seja fornecida à parte em sua integralidade, com todos os áudios do período, sem possibilidade de qualquer seleção de áudios, pelos policiais executores da medida, impossibilidade que, nas palavras do Ministro Gilmar Mendes, atua como verdadeira garantia ao cidadão”.

STJ, HC Nº. 160.662/RJ – 6ª Turma, Rel. Min. Assusete Magalhães, julgado em 18.02.2014.

Vejamos que, em que pese à inexistência de definição legal de cadeia de custódia, a questão epistêmica de atividade probatória tem obtido lugar de relevância, com seu respectivo enquadramento nas regras e princípios de natureza processual.

Em tempo, o Projeto de Lei nº. 8.045/2010, que pretende lançar um novo Código Processual Penal, conduz uma procedimentalização da autenticidade das provas produzidas e, sua respectiva custódia, nos moldes do artigo 203, senão vejamos:

Art. 203. Durante o curso do processo judicial, é permitido às partes, quanto à perícia:

  • Havendo requerimento das partes, o material probatório que serviu de base à perícia será disponibilizado no ambiente do órgão oficial e na presença de perito oficial, que manterá sempre sua guarda, para exame pelos assistentes, salvo se for impossível a sua conservação.

 

  1. Considerações Finais

Em atenção ao acervo exposto no presente artigo, demonstrando a preocupação mundial com o instituto da cadeia de custódia, entendemos que é de suma importância a sua utilização prática, não só para conduzir o devido processo legal de natureza substancial, mas também para conduzir a movimentação da Máquina Judiciária conforme a boa-fé processual, os bons costumes, sem a utilização de artifícios desabonadores dos próprios órgãos de controle e da defesa.

A pretensão maior, quando um caso é submetido ao crivo do Poder Judiciário, é ofertar o maior número de elementos probatórios e, as melhores fontes, para que haja uma análise perfunctória da matéria. O seu desvirtuamento, além de macular um bom julgamento, coloca em xeque a moralidade daquele que rompeu com a autenticidade da integridade do arcabouço probatório, caindo em descrédito com a sociedade.

Nesse sentido, pela justeza, eficiência e garantia dos direitos fundamentais dos averiguados, é importante incutir na mente dos atores da persecução criminal, a cautela que se deverá imprimir nos crimes perpetrados por meios eletrônicos, para se alcançar a excelência de uma decisão judicial, seja ela absolutória ou condenatória, inibindo-se eventuais erros provocados com a manipulação indevida dos elementos probatórios de natureza eletrônica.

Marco J. Eugle (marcoeugle@digitalrights.cc)

 

 

[1] TEIXEIRA, Tarcisio. Curso de direito e processo eletrônico – doutrina, jurisprudência e prática. 2ª Edição atualizada e ampliada. Editora Saraiva. 2014, p. 457.

[2] Tratam-se de ilícitos penais que, após a consecução de seus atos executórios com conseguinte exaurimento, deixam caminhos palpáveis para a identificação do seu modus operandi e potencial identificação do autor do fato.

[3] URAZÁN BAUTISTA, Juan Carlos. La cadena de custodia en el nuevo codigo de procedimento penal. Disponível em: https://fundacionluxmundi.com/custodia.php. Acesso em 01.12.2016.

[4] URAZÁN BAUTISTA, Juan Carlos. La cadena de custodia en el nuevo codigo de procedimento penal. Disponível em: https://fundacionluxmundi.com/custodia.php. Acesso em 01.12.2016.

[5] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

[6] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;

[7] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

[8] TÁVORA, Nestor. ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual penal. 8ª Edição revista, ampliada e atualizada. Editora Juspodivm: Salvador. 2013, p. 1101.

[9]  LOPES JR, Aury. DA ROSA. Alexandre Morais. A importância da cadeia de custódia para preservar a prova penal. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-jan-16/limite-penal-importancia-cadeia-custodia-prova-penal. Acesso em: 01.12.2016

[10] PRADO, Geraldo. Ainda sobre a cadeia de custódia das provas. Disponível em: www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5189-Ainda-sobre-a-quebra-da-cadeia-de-custodia-das-provas. Acesso em: 01.12.2016.

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