A intimidade, que há pouco tempo vislumbrava mínimo interesse do Direito Penal brasileiro, parece encontrar sua merecida tutela com inúmeras inovações legislativas recentes que reconheceram a necessidade de proteger este importante bem jurídico também através de seus institutos. Destacam-se a criminalização da violação de dispositivos informáticos (Lei n. 12.737/2012), da divulgação indesejada de fotos íntimas (Lei n. 13.718/2018) e, agora, da perseguição obsessiva – ou “stalking” – com a aprovação do Projeto de Lei n. 1369/2019.
A nova figura típica foi muito bem inserida no capítulo dos crimes contra a liberdade individual através da criação do artigo 147-A no Código Penal, pois, da mesma forma como faz o crime de ameaça, visa proteger a vítima de constrangimentos físicos ou morais que busquem condicionar, limitar ou eliminar o exercício de suas liberdades. É comum verificar que vítimas de “stalking” não se sintam seguras em suas próprias residências, em locais públicos ou de trabalho, pois sentem a necessidade de estar em permanente estado de alerta quanto à possibilidade de serem surpreendidas a qualquer momento por seus algozes. Traduz, na maioria de seus casos, uma violência psicológica aguda, de difícil medição e reparação.
E considerando a amplitude de comportamentos que poderiam reproduzir os reflexos retro narrados, foi muito feliz o legislador ao prever a perseguição obsessiva de forma aberta, respeitando a elasticidade e dinâmica das interações sociais e impondo como único e verdadeiro requisito de tipificação que a perseguição seja feita “reiteradamente”, afastando deste tipo penal, portanto, as hipóteses de importunação isolada. Para estes casos restariam os crimes mais tradicionais, como o constrangimento ilegal, os crimes contra a honra, ou a própria ameaça, que possuem resposta penal significativamente menor, já que o novo artigo prevê penas de reclusão, de um a quatro anos, além de multa.
O dispositivo em análise ainda prevê que a perseguição obsessiva poderá ser caracterizada quando feita: através de ameaças; da restrição da liberdade de locomoção; ou de qualquer outra forma que invada ou perturbe a liberdade ou a privacidade de alguém. Aliás, a amplitude da novela norma proibitiva trás salutar distinção entre tais condutas, “perturbar” e “invadir”, posto que a primeira pressupõe que a vítima perceba a ação do agente perseguidor, de forma a sofrer a reação psicológica mencionada anteriormente. Bastaria, por exemplo, que o autor fizesse notada sua presença próximo da residência ou do local de trabalho da vítima, de forma reiterada e injustificada, especialmente quando ele estiver ciente de que este comportamento está sendo constrangedor para ela, e dita perturbação seria suficiente para configurar o novo tipo penal.
Por outro lado, a configuração de uma “invasão” da esfera de privacidade de alguém sequer exige que a vítima conheça a empreitada criminosa, hipótese bastante comum na literatura criminológica deste comportamento. Aqui se encontram casos tais como do indivíduo que monitora ou fotografa a vítima, em público ou em sua vida privada; personifica a vítima através de perfis falsos em redes sociais para interagir com sua lista de contatos; ou mesmo invade fisicamente seu local de trabalho ou sua residência para conhecer e experimentar o cenário de sua intimidade. Nestes casos, não poderá alegar o perseguidor a atipicidade de sua conduta sob o fundamento de que a ignorância da vítima sobre suas ações nunca lhe resultou qualquer perturbação, uma vez que a mera violação da esfera de privacidade de alguém já satisfaz o requisito legal para a responsabilização penal.
Importante ressaltar que muito embora o “stalking” tenha ganhado expressividade no âmbito da violência contra a mulher, onde inclusive já podia ser classificado como uma situação de “violência psicológica”, no tipo penal brasileiro da perseguição obsessiva não há previsão que limite o alcance do dispositivo apenas a este contexto. Muito pelo contrário, o crime do art. 147-A poderá ser praticado independentemente do gênero das partes envolvidas e da natureza da relação entre elas, mas será majorado da metade se a vítima for perseguida em razão da condição do sexo feminino, ou ainda quando for criança, adolescente ou idosa, ou, enfim, se o crime for praticado em concurso de agentes ou com emprego de arma.
Por: Rafael Nobre
Delegado de Polícia da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Graduado e Mestre em Direito Penal pela PUC/SP. Professor no curso de pós-graduação em direito penal da FMU.