Na Boca do Povo – Precisamos legislar sobre fake news?

Por Gisele Amorim Zwicker e Renata Yumi Idie

Atualmente, é inegável a importância da Internet como meio de informação por parte da sociedade. Uma pesquisa realizada em 2016 pela Advice Comunicações Corporativa e a BonusQuest demonstrou que as informações disponibilizadas nos meios virtuais são as principais fontes absorvidas pela população[1].

De acordo com as conclusões do estudo, cerca de 90% dos entrevistados admitiram consumir informações por meio de portais de notícia, ao passo em que 78% consomem informações por meio das redes sociais.

Verifica-se, portanto, que o meio virtual é uma importante ferramenta de diálogo do cidadão brasileiro com a sua realidade e o cenário nacional e global, o qual acaba voltando-se para os canais de comunicação que apresentam posicionamento de acordo com a sua afinidade de pensamento e, por vezes, reproduzindo e proporcionando a disseminação do conteúdo sem antes exercer uma avaliação crítica sobre a sua veracidade.

 Neste cenário, destaca-se o fenômeno da “fake news”, nome dado ao conteúdo propositadamente impreciso ou falso, criado com o objetivo de manipular o receptor do conteúdo, que tem a sua noção sobre a realidade adulterada de acordo com o viés da informações à qual teve acesso. Na pesquisa realizada pela Advice Comunicações Corporativa e a BonusQuest, levantou-se que mais de 40% dos entrevistados admitiram ter compartilhado uma notícia desta natureza com conhecidos, colaborando com a sua disseminação.

Embora o ato de criar e disseminar falsa informação seja anterior ao desenvolvimento da tecnologia da Internet, a prática virtual tem causado grande preocupação, especialmente após a comprovação de que a sua ampla disseminação teria sido um dos fatores decisivos para os resultados da disputa eleitoral americana ao cargo presidencial em 2016.

No Brasil, o assunto tem sido um dos mais comentados nos últimos meses, considerado um importante e destrutivo instrumento nas corridas eleitorais, marcada pela ampla disseminação de informações falsas ou manipuladas pelas redes sociais e por aplicativos de mensagens instantâneas. Mesmo após o resultado das eleições, a disseminação de notícias falsas persiste e não demonstra indícios de que se abrandará no futuro próximo.

Contudo, diante desta crescente realidade, surgem os questionamentos: a prática é ilícita? E, em caso positivo, qual é o tratamento jurídico atribuído às matérias desta natureza? O nosso ordenamento jurídico é capaz de tratar adequadamente o assunto?

Inicialmente, é importante pontuar que os cidadãos brasileiros possuem o direito fundamental de acesso à informação, o qual é previsto na Constituição Federal. Isso significa dizer que os brasileiros possuem o direito de serem devidamente informados a respeito de sua realidade e do cenário político e social que o cerca.

E de outra forma não poderia ser. A informação é necessário instrumento para garantir o amplo exercício da cidadania, tratando-se de requisito básico para que uma pessoa possa compreender o mundo que a cerca e adotar um posicionamento. Para tanto, o cidadão não pode somente ter acesso à informação, mas esta tem que ser correta e imparcial, possibilitando o exercício livre do juízo de valor pelo indivíduo.

Assim, atualmente, é possível a adoção de medidas com o objetivo de retificar/remover o conteúdo ilícito do ar e/ou apresentar direito de resposta e, quando conhecida a fonte originária, obter a reparação pelos danos causados.

A fim de evitar abusos, o próprio legislador constitucional, por meio do § 1º do artigo 220 da Constituição Federal, previu a possibilidade de restringir a liberdade de informação jornalística, demonstrando a vontade do legislador em condicionar a referida liberdade à observância de determinados direitos de personalidade, dentre eles o direito à imagem e à honra.

A violação destes direitos fundamentais são geralmente os fundamentos utilizados para combate às chamadas “fake news”, na medida em que a infração a tais direitos é capaz de legitimar a adoção de medidas que façam cessar a violação, assim como obter a reparação pelos danos causados, em se tratando da esfera cível. 

Ademais, o entendimento dos tribunais é no sentido de responsabilização não só daquele que elabora o conteúdo ilícito como daquele que o compartilha, aumentando a sua visualização e colaborando com a intensificação dos prejuízos da vítima[2].

Na esfera criminal, por sua vez, é possível a adoção de medidas para a responsabilização da pessoa responsável pelo conteúdo pela prática de crimes contra a honra, bem como, a depender do resultado alcançado pela conduta, pelos crimes previstos na lei de segurança pública. 

Contudo, o Poder Legislativo brasileiro entende que as medidas jurídicas atualmente disponíveis são insuficientes para tratar integralmente da questão, notadamente por não abordar o assunto de forma específica. De acordo com um levantamento realizado pela Pública em maio deste ano[3], tramitam atualmente 20 projetos de lei no Congresso Nacional que possuem o objetivo de tratar de forma específica desta questão por meio de sua tipificação criminal.

Os projetos são diversos, sugerindo a tipificação criminal da criação e divulgação de notícias falsas, com alterações ao Código Penal, Código Eleitoral, Lei de Segurança Pública, Marco Civil da Internet ou, até mesmo, por meio de criação de lei própria.

A divergência de abordagens sobre o tema é o primeiro indício do verdadeiro desafio que o combate às notícias falsas representa na prática; trata-se de questão complexa, que exige cuidadosa ponderação sobre os mais diversos aspectos da vida em sociedade que podem ser impactados pela regulamentação específica do assunto.

Em primeiro lugar, é importante que se conceitue de forma adequada e objetiva o que constitui a “fake news”, determinando, ainda, se o que será punido será a conduta da criação da notícia falsa, ou o resultado obtido por meio de sua veiculação.

Os projetos de lei analisados adotaram termos bastante imprecisos para a conceituação da conduta, utilizando termos como “fato que sabe ou que por suas características e circunstâncias deveria saber inverídicos” (PL 9626/2018) ou “fatos sabidamente inverídicos” (PL 10292/2018), termos genéricos e de difícil comprovação – afinal, como será possível comprovar que uma determinada pessoa tinha conhecimento ou não de que uma notícia divulgada era falsa? E, mais, caso se comprove sua ignorância, estará isenta de sua responsabilidade pela criação e/ou divulgação do conteúdo?

No que se refere ao resultado, alguns projetos de lei vinculam a possibilidade de criminalização da conduta a um resultado específico, como é o caso do PL 9626/2018, que determina que as “fake News” criminalizáveis seriam aquelas que potencialmente possam influenciar nos resultados eleitorais, ou o PL 11004/2018, que determina que será punível a notícia falsa que tenha potencial de influenciar o eleitorado.

Neste quesito, novamente, verificamos redações imprecisas, que trazem critérios de difícil comprovação ou verificação, o que pode, na prática, tornar a regulamentação sobre o tema inócua.

Além dos pontos acima destacados, necessário delimitar de forma específica quem seria o agente da conduta, de acordo com sua participação e responsabilidade. Muitos dos projetos apresentados atribuem aos criadores e compartilhadores do conteúdo falso a responsabilidade, ao passo em que os PLs 9647/2018 e 7604/2017 pretendem responsabilizar os provedores de aplicação pelo teor das matérias falsas divulgadas em suas plataformas, em violação ao quanto já previsto no artigo 19 do Marco Civil da Internet.

Por fim, mas de igual importância, primordial que se encontre uma métrica de punibilidade que seja apta a combater de forma efetiva a criação e divulgação de notícias falsas, especialmente considerando que este tem se mostrado um mercado especialmente lucrativo nos últimos anos.

Após a análise dos projetos de lei que atualmente tramitam junto ao Congresso Nacional, é possível verificar que não há, no momento, nenhum que se debruce de forma adequada sobre todos os pontos acima levantados, sendo de rigor que a questão seja estudada de forma mais detalhada antes de qualquer avanço no tema por parte do Poder Legislativo.

Isso porque, ainda que se compreenda que a regulação de referentes questões seja necessária, é fundamental que se atente para o fato de que a criação de instrumentos inadequados para o combate das notícias falsas pode, também, gerar uma arma perigosa contra a liberdade de expressão e de imprensa.

Ademais, considerando que parte das “fake news” circulam via aplicativos de mensagens instantâneas, há também a dificuldade de se identificar a fonte originária, dificultando a responsabilização dos agentes principais, levando à reflexão de qual seria o efeito prático de uma nova lei que prevê medidas específicas de responsabilização.

Assim, por ora, um importante e adequado caminho para o combate das notícias falsas é a conscientização da população a respeito da necessidade de verificação do conteúdo que lhe é apresentado junto a fontes confiáveis antes de disseminá-lo, assumindo um papel mais reflexivo e responsável dentro da sociedade de informação.

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[1] http://www.advicecc.com/pesquisaconsumo2016

[2] RESPONSABILIDADE CIVIL – AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS – RÉS QUE DIVULGARAM TEXTO E FIZERAM COMENTÁRIOS NA REDE SOCIAL “FACEBOOK” SEM SE CERTIFICAREM DA VERACIDADE DOS FATOS – ATUAÇÃO DAS REQUERIDAS QUE EVIDENTEMENTE DENEGRIU A IMAGEM DO AUTOR, CAUSANDO-LHE DANOS MORAIS QUE PASSIVEIS DE INDENIZAÇÃO – LIBERDADE DE EXPRESSÃO DAS REQUERIDAS (ART. 5, IX, CF) QUE DEVE OBSERVAR O DIREITO DO AUTOR DE INDENIZAÇÃO QUANDO VIOLADA A SUA À HONRA E IMAGEM, DIREITO ESTE TAMBÉM CONSTITUCIONALMENTE DISPOSTO (ART. 5, V, X, CF) – VALOR ARBITRADO A TÍTULO DE DANOS MORAIS QUE DEVE SER REDUZIDO PARA FUGIR DO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA DA PARTE PREJUDICADA, PORÉM, MANTENDO O SEU CARÁTER EDUCACIONAL A FIM DE COIBIR NOVAS CONDUTAS ILÍCITAS – SENTENÇA PARCIALMENTE MODIFICADA, PARA MINORAR O QUANTUM INDENIZATÓRIO. RECURSOS PARCIALMENTE PROVIDOS. (TJSP. 2ª Câmara de Direito Privado. Apelação nº 4000515-21,2013.8.26.0451. Relator: Neves Amorim. Julgado em 26.11.2013.

[3] https://apublica.org/2018/05/20-projetos-de-lei-no-congresso-pretendem-criminalizar-fake-news/

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